É possível a cobrança de ISS para Netflix e Spotify?

O streaming é a transmissão contínua de conteúdo de forma digital através de plataformas como Netflix, Spotify, Amazon, Youtube, etc. O streaming se tornou extremamente popular por facilitar o acesso a conteúdo multimídia, como músicas e vídeos de forma simplificada, sem que haja a necessidade de download, o que ocuparia espaço no disco rígido do usuário. O que acontece é um arquivamento temporário em cache do sistema. O usuário, então, tem acesso ao conteúdo digital apenas para visualizá-lo, sem violação, portanto, dos direitos autorais daquele conteúdo.

O consumo de streaming é extremamente popular pela facilidade do seu acesso ao usuário, que pode ser realizado através do computador, celulares, tablets e smart TVs. Como respeita os direitos autorais, é inclusive incentivado pela indústria fonográfica e fomenta o setor. No ano passado (2016), por exemplo, 44,8% da receita da indústria fonográfica mundial foi através de streaming pago pelos usuários. É justamente esse crescimento que chama a atenção do Fisco para ter uma participação tributária nessa fatia de mercado.

No final de 2016, foi sancionada a Lei Complementar nº 157/2016 que alterou o ISSQN (Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza), dentre outras modificações, acrescentando a possibilidade de tributação do streaming, considerando-o prestação de serviço. Diversos municípios brasileiros já publicaram leis, ou estão na iminência de fazê-lo, para instituir a cobrança de ISSQN sobre o “serviço” de streaming, como o Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador. Acontece que tal tributação é inconstitucional, pois o ISSQN é imposto que somente incide sobre a prestação de serviço (obrigação de fazer) e o streaming não o é, conforme explicaremos adiante.

A Constituição Federal, em seu artigo 156, III, dispõe que compete aos Municípios instituir impostos sobre serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II (transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação), definidos em lei complementar. A Lei Complementar 116/03 trata sobre o ISSQN e dispõe em seu artigo que o imposto em questão tem como fato gerador a prestação de serviços constantes da lista anexa, ainda que esses não se constituam como atividade preponderante do prestador. Conforme dito anteriormente, a LC 157/06 acrescentou na lista anexa da legislação do ISSQN o seguinte item:

1.09 – Disponibilização, sem cessão definitiva, de conteúdos de áudio, vídeo, imagem e texto por meio da internet, respeitada a imunidade de livros, jornais e periódicos (exceto a distribuição de conteúdos pelas prestadoras de Serviço de Acesso Condicionado, de que trata a Lei no 12.485, de 12 de setembro de 2011, sujeita ao ICMS)”.

Tentou, portanto, a legislação, tributar o streaming afirmando que trata-se de uma prestação de serviço. Tal afirmação, porém não é verdadeira. Segundo o direito privado, como bem ensina Aires Barreto (2009), “serviço é conduta humana (prestação de serviço), consistente em desenvolver um esforço visando a adimplir uma obrigação de fazer”. A obrigação de fazer exige que o devedor realize uma atividade, um serviço para o credor.

Por outro lado, a obrigação de dar é aquela que tem por “objeto prestações de coisas, consistem na atividade de dar (transferindo-se a propriedade da coisa), entregar (transferindo-se a posse ou a detenção da coisa) ou restituir (quando o credor recupera a posse ou a detenção da coisa entregue ao devedor).” (GAGLIANO e PAMPLONA FILHO, 2006)

Analisando a natureza jurídica do streaming, percebe-se que não há uma atividade propriamente dita, mas somente uma disponibilização do acesso à coisa. O assinante paga uma mensalidade para que lhe seja disponibilizado o acesso à coisa (streaming). Não há vinculação de nenhuma prestação de serviço ou atividade. O fato de a plataforma (Netflix, Spotify) manter o perfeito funcionamento do acesso não se configura atividade ou serviço, pois é simplesmente o que torna viável a entrega da coisa.

A legislação tributária não pode modificar os conceitos próprios do direito privado, ampliando o sentido da expressão “prestação de serviço” para incluir o streaming na hipótese de incidência do ISSQN. É o que dispõe o artigo 110, CTN:

“Art. 110, CTN: A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.”

O próprio STF tem entendimento no sentido de que não incide ISSQN sobre obrigações de fazer, o que culminou na edição da Súmula Vinculante nº 31: “É inconstitucional a incidência do imposto sobre serviços de qualquer natureza – ISS sobre operações de locação de bens móveis.”

“Na espécie, o imposto, conforme a própria nomenclatura, considerado o figurino constitucional, pressupõe a prestação de serviços e não o contrato de locação. Em face do texto da Carta Federal, não se tem como assentar a incidência do tributo na espécie, porque falta o núcleo dessa incidência, que são os serviços. Observem-se os institutos em vigor tal como se contêm na legislação de regência. As definições de locação de serviços e locação de móveis vêm-nos do Código Civil. Em síntese, há de prevalecer a definição de cada instituto, e somente a prestação de serviços, envolvido na via direta o esforço humano, é fato gerador do tributo em comento. Prevalece a ordem natural das coisas cuja força surge insuplantável; prevalecem as balizas constitucionais, a conferirem segurança às relações Estado-contribuinte; prevalece, alfim, a organicidade do próprio Direito, sem a qual tudo será possível no agasalho de interesses do Estado, embora não enquadráveis como primários.”(AI 623226 AgR, Relator Ministro Marco Aurélio, Primeira Turma, julgamento em 1.2.2011, DJe de 11.3.2011)

Nesse sentido, explica Orlando Gomes (2007) que o que caracteriza a locação é “o regresso da coisa locada a seu dono, a passo que o serviço prestado fica pertencendo a quem o pagou e não é suscetível de restituição”. De igual forma, no streaming, a propriedade da coisa é da plataforma (Netflix, Spotify, etc.) que permite o uso de seu assinante por um prazo certo, de forma bem similar à que ocorre na locação de bem móvel. No streaming, a obrigação de devolver a coisa, por tratar-se de bem imaterial, ocorre com o fim da possibilidade de acesso. O streaming, nada mais é que uma locadora de conteúdo multimídia, em que o cliente paga um valor para ter acesso ao conteúdo ali disponível. A diferença entre as empresas de streaming e as locadoras de DVDs da década de 90 e 2000 é que no streaming o arquivo multimídia é virtual, imaterial, enquanto que nas locadoras de DVDs, o arquivo era material.

Atualmente, em julgamento a respeito da incidência do ISSQN sobre atividades desenvolvidas por operadoras de planos de saúde, o Supremo tratou sobre o assunto da interpretação da norma tributária e o artigo 110 do CTN de forma diversa ao entendimento até então expressado:

“O Direito Constitucional Tributário adota conceitos próprios, razão pela qual não há um primado do Direito Privado. O art. 110, do CTN, não veicula norma de interpretação constitucional, posto inadmissível interpretação autêntica da Constituição encartada com exclusividade pelo legislador infraconstitucional. (…) A doutrina do tema, ao analisar os artigos 109 e 110, aponta que o CTN, que tem status de lei complementar, não pode estabelecer normas sobre a interpretação da Constituição, sob pena de restar vulnerado o princípio da sua supremacia constitucional. (…) A Constituição Tributária deve ser interpretada de acordo com o pluralismo metodológico, abrindo-se para a interpretação segundo variados métodos, que vão desde o literal até o sistemático e teleológico, sendo certo que os conceitos constitucionais tributários não são fechados e unívocos, devendo-se recorrer também aos aportes de ciências afins para a sua interpretação, como a Ciência das Finanças, Economia e Contabilidade. (…) 12. A unidade do ordenamento jurídico é conferida pela própria Constituição, por interpretação sistemática e axiológica, entre outros valores e princípios relevantes do ordenamento jurídico.” (RE651703/PR, Relator Ministro Luiz Fux, Tribunal Pleno, julgamento em 20/09/2016, DJE de 26/04/2017.)

Apesar de ser um julgamento recente realizado pelo pleno, ainda é cedo para dizer que houve mudança definitiva no entendimento do tribunal, uma vez que a Súmula Vinculante nº 31 continua em vigor.

O julgamento citado traz uma explicação sobre a forma de se interpretar conceitos do Sistema Tributário Constitucional, mas, data maxima venia, ao nosso ver, esquece de interpretar o Sistema como um todo e a intenção do legislador constitucional. É claro que o legislador constituinte deu aos Entes federativos poder de tributar. Porém, fez questão de, ao mesmo tempo, limitar esse poder. Analisando a sistemática tributária, percebe-se que a Constituição Federal, ao mesmo tempo em que percebe a importância da tributação para viabilizar a atividade estatal, vê, também, a necessidade de proteger o contribuinte de abusos e excessos na tributação.

Não é, portanto, viável, que a lei amplie os conceitos e intenções pretendidos pelo legislador constitucional. A Constituição não traz os conceitos de todos os institutos que dispõe, pois isto seria inviável. Cabe, justamente, à legislação específica complementar trazer conceitos e explicar melhor esses institutos, conforme disposto no artigo 146 da Carta Magna:

“Art. 146, CF. Cabe à lei complementar:

I – dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios;

II – regular as limitações constitucionais ao poder de tributar;

III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:

a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes;

b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários;

c) adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas.

d) definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso do imposto previsto no art. 155, II, das contribuições previstas no art. 195, I e §§ 12 e 13, e da contribuição a que se refere o art. 239.” (grifos nossos).

Percebe-se, portanto, que a própria Constituição diz que é a lei complementar que irá trazer os conceitos, definições de tributos, suas espécies, etc. O Código Tributário Nacional, apesar de ser lei ordinária em sua origem, tem status de lei complementar. Logo, pode e deve o CTN estabelecer as normas gerais em matéria tributária, como o fez, inclusive com a limitação de interpretação trazida em seu artigo 110, já mencionado neste artigo.

Assim, entendemos que o streaming não é prestação de serviço por não tratar-se de obrigação de fazer e que, portanto, com base no disposto no Sistema Tributário como um todo, em especial no CTN artigo 110, não pode ser base de cálculo do ISSQN.

 

Fonte: Simone Lopes – Jusbrasil.